Dia 27, de manhã, fui colocar a data no meu caderno e pensei: "dia 27 de maio é dia de alguma coisa, é aniversário de alguém ou alguma data importante". Consultando o meu arquivo interno não pude me lembrar de nada que pudesse referir a este dia.
Ano que vem, neste mesmo dia, terei alguma coisa pra lembrar: algumas horas depois, faleceu no Hospital das Clínicas o Austregésilo Carrano Bueno, ou só Carrano para os conhecidos.
Pra quem não sabe, o Carrano, além de um baita amigo meu, era uma pessoa do caralho.
Vou dar uma ajudinha: ele foi o autor do livro Canto dos Malditos (é um livrão, pra quem ainda não leu, eu recomendo!), autobiografia que inspirou o filme Bicho de Sete Cabeças, da Laís Bodansky. O livro é um precioso documento que denuncia todos os podres do "holocausto psiquiátrico" no Brasil, como ele costumava chamar.
Aos 17 anos, ele foi internado em um hospital psiquiátrico à força pelo pai, que achou maconha em seu bolso. Durante três anos, ele foi transferido de um hospital pra outro, sem nunca ter chance de escapar, e sendo submetido a todo tipo de atrocidades, a torturas, eletrochoques, injeções de psicotrópicos, entre muitas outras coisas. Como se não bastasse, quando tudo isso terminou, teve que enfrentar o preconceito das pessoas e a dificuldade de reintegração do lado de cá dos muros.
Isso tudo é só um breve resumo da primeira parte de seu sofrimento. Depois de anos de pesquisa, o Carrano publicou o Canto dos Malditos e moveu uma ação indenizatória por erro médico psiquiátrico, a primeira do Brasil. Porém, em vez de ser recompensado pelo seu sofrimento, foi condenado a pagar indenização aos hospitais e psiquiatras citados no seu livro. No dia em que nos conhecemos, ele me contou que não tinha nem onde cair morto, e não podia ter absolutamente nenhum bem em seu nome, porque nesse caso teria o bem confiscado em nome da indenização que deveria pagar.
A existência dele não foi em vão. Ele foi uma pessoa muito forte, corajosa, dedicou sua vida à extinção da cultura manicomial no Brasil junto ao Movimento da Luta Antimanicomial. No período em que sua obra foi censurada, ele mesmo vendia, escondido, nas palestras que dava, em shoppings, faculdades. Lembro-me que em uma das primeiras vezes que eu o vi, com doze anos, em uma palestra que ele deu, eu e minhas amigas fomos falar com ele, que nos levou para um carro onde ele guardava vários exemplares e nos disse que esse era o único jeito de vender. Nos livros vendidos para aquelas menininhas, que ele deve ter achado tão engraçadas, ele escreveu: "a sensibilidade é o nosso maior dom. Sempre preservá-la". É dessa a frase que quero lembrar quando pensar nele no futuro.
Publicou muitos outros livros, menos conhecidos, foi dramaturgo, poeta, palestrante sobre saúde mental, ator e uma pessoa maravilhosa.
Mesmo que a mídia tenha virado as costas pra ele, mesmo que tenham tentado calar sua voz, ele lutou até o fim pelo que acreditava, e foi isso que o tornou uma das melhores pessoas que eu já conheci.
Tenho muito a agradecê-lo pelo que ele me ensinou, e digo de boca cheia que tenho muito orgulho de ter sido sua amiga.
Espero que não seja esquecido.
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Quem disse que só se morre uma vez?
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Marília
às 15:56
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