quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

“Tenho sido um assassino psicopata”


Às vezes as pessoas se perguntam se podem fazer alguma coisa para tornar o mundo mais justo, ou menos injusto. Creio que a difusão da verdade, a denúncia das injustiças e da mentira já é uma forma de contribuir para um mundo melhor. A entrevista em que Jimmy Massey relata sua experiência como soldado do exército norte-americano no Iraque é um exemplo de denúncia que deve ser difundida para todo o mundo. (CF)
Foi publicada no jornal Hora do Povo de 21-01-2010.


Relato de um marine que esteve no Iraque
“Tenho sido um assassino psicopata”
Durante quase 12 anos o sargento Jimmy Massey foi um marine de coração duro. Em março de 2003, chegou ao Iraque com as tropas invasoras e dirigiu 45 homens que não duvidaram em matar civis inocentes. Em 2004, Jimmy Massey escreveu o livro Cowboys do Inferno, um testamento aterrador do genocídio que os EUA cometem dia a dia contra o povo iraquiano. Hoje um dos principais ativistas contra a guerra do Iraque, Jimmy responde às perguntas da jornalista cubana Miriam Elizalde, do Cubadebate
ROSA MIRIAM ELIZALDE
“Tenho 32 anos e sou um assassino psicopata treinado. As únicas coisas que sei fazer é vender aos jovens a idéia de se juntarem aos marines e matar. Sou incapaz de conservar um trabalho. Para mim os civis são depreciáveis, atrasados mentais, uns débeis, uma manada de ovelhas. Eu sou seu cão pastor. Sou um predador. Nas Forcas Armadas me chamam ‘Jimmy o Terrível’”.
Este é o segundo parágrafo do livro escrito há três anos por Jimmy Massey, com a ajuda da jornalista Natasha Saulnier, que foi apresentado na Feira do Livro de Caracas. Cowboys do Inferno é o relato mais violento já escrito sobre a experiência de um ex-membro do Corpo de Marines, um dos primeiros a chegar ao Iraque durante a invasão de 2003 e que decidiu contar todas as vezes que seja necessário o que significa ter sido por 12 anos um desapiedado marine e como a guerra o transformou.
Jimmy participou do painel principal da Feira, que teve um título polêmico: “Estados Unidos, a Revolução é possível”, e seu testemunho foi, sem dúvida, o de maior impacto na audiência. Vestido com roupa militar, óculos escuros, caminha com ares marciais e seus braços estão completamente tatuados. Parece exatamente o que era: um marine.
Quando fala é outra coisa: alguém profundamente marcado por uma aterradora experiência que tenta evitar a outros jovens incautos. Como assegura em seu livro, não foi o único que matou no Iraque: esta foi uma prática constante entre seus companheiros. Quatro anos depois de deixar a guerra, todavia, vive perseguido pelos pesadelos.
Rosa Miriam Elizalde: Que significam todas essas tatuagens?
Jimmy Massey: Tenho muitas. Fiz no exército. Na mão (entre os dedos polegar e anular), o símbolo da Blackwater, o exército mercenário que foi fundado onde nasci, na Carolina do Norte. Fiz num ato de resistência, porque os marines são proibidos de tatuarem-se entre os punhos e as mãos. Um dia eu e os integrantes do meu pelotão nos embebedamos e todos fizemos a mesma tatuagem: um cowboy com olhos injetados de sangue sobre várias asas, que representam a morte. No braço direito, o símbolo dos marines, com a bandeira norteamericana e do Texas, onde me alistei. No peito, do lado esquerdo, um dragão chinês que solta a pele e significa que a dor é a debilidade escapando do corpo. O que não nos mata nos deixa mais fortes.
R. M. E.: Por que disse que no Corpo de Marines encontrou as piores pessoas que já conheceu em sua vida?
J. M.: Os Estados Unidos só têm duas maneiras de usar os marines: para tarefas humanitárias e para assassinar. Nos 12 anos que passei no Corpo de Marines dos EUA jamais participei de missões humanitárias.
R. M. E.: Antes de ir para o Iraque você recrutava jovens para ingressarem nas Forças Armadas? O que significa ser um recrutador nos Estados Unidos?
J. M.: Ser um mentiroso. A administração Bush forçou a juventude para que entrasse para as Forças Armadas e o que basicamente fez – e eu fiz também – foi tratar de ganhar pessoas com incentivos econômicos. Durante três anos recrutei 74 pessoas, que nunca me disseram que queriam entrar para o exército para defender o país, nem se manifestavam sobre nenhuma razão patriótica. Queriam receber dinheiro para irem para uma universidade ou obterem seguro de saúde. Eu lhes descrevia primeiro todas essas vantagens e só no final lhes falava que iam servir à pátria. Jamais recrutei o filho de um rico. Para manterem o trabalho os recrutadores não podiam ter escrúpulos.
R. M. E.: Agora o Pentágono tem relaxado mais nos requisitos para a entrada nas Forças Armadas. O que significa isso?
J. M.: Os padrões para o recrutamento têm baixado enormemente, porque quase ninguém quer alistar-se. Já não é impedimento ter problemas mentais, nem antecedentes criminais. Podem ingressar pessoas que tenham cometido crimes de traição, se disserem que foram sentenciados a mais de um ano de prisão, o que se considera um delito sério. Podem ingressar jovens que não tenham terminado os estudos secundários. Se passam na prova mental, ingressam.
R. M. E.: Você mudou depois da guerra, mas que sentimentos tinha antes?
J. M.: Eu era como outro soldado qualquer, que acreditava no que diziam. Contudo, quando estava recrutando, comecei a me sentir mal: como recrutador tinha que mentir o tempo todo.
R. M. E.: Porém acreditava que seu país entrava numa guerra justa contra o Iraque.
J. M.: Sim. Os informes de inteligência que recebíamos diziam que Saddan tinha armas de destruição em massa. Depois descobrimos que era tudo mentira.
R. M. E.: Quando percebeu que o haviam enganado?
J. M.: No Iraque, onde cheguei em março de 2003. Meu pelotão foi enviado aos lugares que haviam sido do Exército iraquiano e vimos milhares e milhares de munições em caixas que tinham a etiqueta norteamericana e estavam ali desde que os Estados Unidos ajudaram o governo de Saddan na guerra contra o Iran. Vi caixas com a bandeira norteamericana e tanques dos EUA. Meus marines – eu era sargento de categoria E6, uma categoria superior a sargento, e dirigia 45 marines – me perguntaram porque haviam munições de nosso país no Iraque. Não entendiam. Os informes da CIA afirmavam que Salmon Pac era um campo de terroristas e que íamos encontrar armas químicas e biológicas. Não encontramos nada. Nesse momento comecei a pensar que nossa missão realmente era o petróleo.
R. M. E.: As linhas mais perturbadoras de seu livro são as que você se reconhece como assassino psicopata. Pode explicar porque disse isso?
J. M.: Fui um assassino psicopata porque me treinaram para matar. Não nasci com essa mentalidade. Foi o Destacamento de Infantaria da Marinha que me educou para que fosse um gangster das corporações estadunidenses, um delinquente. Me treinaram para cumprir cegamente a ordem do presidente dos Estados Unidos e trazer para casa o que ele pedia, sem pensar em nenhuma consideração moral. Eu era um psicopata porque nos ensinaram a disparar primeiro e perguntar depois, como faria um doente e não um soldado profissional, que só deve enfrentar outro soldado. Se tínhamos que matar mulheres e crianças, nós fazíamos. Portanto, não éramos soldados, mas mercenários.
R. M. E.: Que experiência exatamente fez você chegar a esta conclusão?
J. M.: Aconteceram várias. Nosso trabalho era ir a determinadas áreas das cidades e fazermos a segurança das estradas. Houve um incidente em particular – e muitos mais – que realmente me levou a beira do precipício. Foi com carros que levavam civis iraquianos. Todos os informes da inteligência que nos chegavam diziam que os carros estavam carregados com bombas e explosivos. Essa era a informação que recebíamos da inteligência. Os carros chegavam a nosso controle e fazíamos alguns disparos de advertência; quando não diminuíam a velocidade, disparávamos sem contemplação.
R. M. E.: Com metralhadoras?
J. M.: Sim. Esperávamos que haveriam explosões ao metralhar cada veículo. Mas não ouvíamos nada. Logo abríamos o carro e, o que encontrávamos? Mortos ou feridos, e nem uma só arma, nenhuma propaganda da Al Qaeda, nada. Salvo civis em um lugar equivocado num momento equivocado.
R. M. E.: Você também relata como seu pelotão metralhou uma manifestação pacífica. Foi isso?
J. M.: Sim. Nos arredores do Complexo Militar de Rashees, ao sul de Bagdá, perto do rio Tigre. Haviam manifestantes ao final da rua. Eram jovens e tinham armas. Quando avançamos havia um tanque que estava estacionado de um lado da rua. O motorista do tanque nos disse que eram manifestantes pacíficos. Se os iraquianos quisessem fazer algo podiam ter feito apontando o tanque. Mas não fizeram. Só estavam se manifestando. Isso nós sentimos bem porque pensamos: “Se fossem disparar, teriam feito naquele momento”. Eles estavam a cerca de 200 metros de nossa tropa.
R. M. E.: Quem deu a ordem de metralhar os manifestantes?
J. M.: O Alto Comando nos disse que não perdêssemos de vista os civis porque muitos combatentes da Guarda Republicana haviam tirado os uniformes, vestiam-se com roupas civis e estavam desencadeando ataques terroristas contra os soldados americanos. Os informes da inteligência que nos davam eram conhecidos basicamente por cada membro da cadeia de comando. Todos os marines tinham muito claro a estrutura da cadeia de comando que se organizou no Iraque. Creio que a ordem de disparar nos manifestantes veio de altos funcionários da Administração, isso incluía tanto os centros de inteligência militar como governamental.
R. M. E.: Você, o que fez?
J. M.: Regressei ao meu veículo, um jipe altamente equipado, e escutei um tiro por cima de minha cabeça. Meus marines começaram a atirar e eu também. Não nos devolveram nenhum disparo, mesmo eu tendo disparado 12 vezes.
Quis assegurar-me de que havíamos matado segundo as normas de combate, da Convenção de Genebra e dos procedimentos operacionais regulamentares. Tentei evitar seus rostos e procurei pelas armas, mas não havia nenhuma.
R. M. E.: E seus superiores, como reagiram?
J. M.: Me disseram que “a merda acontece”.
R. M. E.: Quando seus companheiros perceberam que tinham sido enganados, como reagiram?
J. M.: Eu era o segundo comandante. Meus marines me perguntavam por que estávamos matando tantos civis. “Você pode falar com o tenente?”, me perguntavam. “Dizer que tem que ter barreiras adequadas, preparadas pelos engenheiros de combate”. A resposta foi: “Não”. No momento que os marines descobriram que era uma grande mentira, enlouqueceram mais.
Nossa primeira missão no Iraque não foi para dar apoio humanitário, como diziam os jornais, mas para assegurar os campos petrolíferos de Bassora. Na cidade de Karbala usamos a artilharia por 24 horas. Foi a primeira cidade que atacamos. Pensei que íamos dar ajuda médica e alimentar à população. Não. Seguimos direto aos campos de petróleo. Antes de chegar ao Iraque, estivemos no Kuwait.
Chegamos em janeiro de 2003 e nossos veículos estavam cheios de comida e remédios. Perguntei ao tenente o que íamos fazer com os suprimentos, pois apenas cabíamos nós com tantas coisas dentro. Ele respondeu que seu capitão havia ordenado deixar tudo no Kuwait. Pouco depois nos deram a ordem de queimar tudo: alimentos e provisões médicas e humanitárias.
R. M. E.: Você também denunciou o uso de urânio empobrecido…
J. M.: Tenho 35 anos e só conservo 80% de minha capacidade pulmonar. Fui diagnosticado com uma doença degenerativa da coluna vertebral, fadiga crônica e dor nos tendões. Antes, todos os dias corria 10 Km por puro prazer, e agora só poso caminhar entre 5 e 6 Km todos os dias. Tenho medo de ter filhos por isso. Minha cara está inflamada. Veja esta foto (mostra-me a imagem da credencial da Feira do Livro), foi tirada pouco depois que regressei do Iraque. Pareço um Frankenstein. Tudo isso se deve ao urânio empobrecido, agora imagina o que estará acontecendo com o povo no Iraque.
R. M. E.: O que aconteceu quando regressou aos EUA?
J. M.: Me trataram como um louco, um covarde, um traidor.
R. M. E.: Seus superiores disseram que é mentira tudo que contou.
J. M.: A evidência contra eles é incômoda. O Exército norteamericano está esgotado. Quanto mais tempo durar esta guerra, mais possibilidade haverá de que minha verdade apareça.
R. M. E.: O livro que você apresentou na Venezuela está editado em espanhol e em francês. Porque não foi publicado nos Estados Unidos?
J. M.: As editoras exigiram que eu eliminasse os nomes reais das pessoas envolvidas e que eu apresentasse a guerra no Iraque envolta em uma neblina, menos cruamente. Não estou disposto a fazer isso. Editoras como New Press, supostamente de esquerda, se negaram a publicá-lo porque temiam se verem envolvidas em ações apresentadas por pessoas apresentadas no livro.
R. M. E.: Por que jornais como o The New York Times e o The Washington Post jamais reproduziram seu testemunho?
J. M.: Eu não repetia o credo oficial, de que as tropas estavam no Iraque para ajudar o povo, nem repetia que os civis morriam por acidente. Me nego a dizer isso. Não havia nenhum disparo acidental contra os iraquianos e me nego a mentir.
R. M. E.: Tem mudado essa atitude?
J. M.: Não. O que tenho feito é incorporar opiniões e obras de pessoas com objeções de consciência: que são contra a guerra em geral ou que participaram da guerra, mas não tiveram este tipo de experiência. E resistem, no entanto, a olhar de frente a realidade.
R. M. E.: Tem fotografias ou documentos que provem o que você está nos contando?
J. M.: Não. Me tiraram todos os pertences quando me ordenaram regressar aos Estados Unidos. Voltei do Iraque só com duas armas: minha mente e uma faca.
R. M. E.: Haverá alguma saída a curto prazo para a guerra?
J. M.: Não. O que vejo é a mesma política entre democratas e republicanos. São a mesma coisa. A guerra é um negócio para ambos os partidos, que dependem do Complexo Militar Industrial. Necessitamos de um terceiro partido.
R. M. E.: Qual?
J. M.: O do socialismo.
R. M. E.: Você participou em um debate cujo título é “Estados Unidos: A Revolução é possível”. Acredita que realmente haverá revolução nos EUA?
J. M.: Já começou. No sul, onde nasci.
R. M. E: Mas essa tem sido tradicionalmente a região mais conservadora do país.
J. M.: Depois do Katrina isso mudou. Nova Orleans parece Bagdá. As pessoas do sul estão indignadas e se perguntam todos os dias como é possível que se atrevam a investir em uma guerra inútil e em Bagdá, quando nada é feito em Nova Orleans. Lembre-se também que no Sul iniciou-se a primeira grande rebelião do país.
R. M. E.: Você iria a Cuba?
J. M.: Admiro Fidel e o povo de Cuba, portanto, se me convidarem, irei à Ilha. Não me importa o que diga o meu governo. Ninguém controla onde vou.
R. M. E.: Você sabe que o símbolo do desprezo imperial com a nossa nação é uma fotografia de marines urinando sobre a estátua de José Martí, o Herói de nossa Independência?
(Três marines americanos subiram até a cabeça de mármore da estátua do Herói Nacional cubano José Martí, em Havana, em 11 de março de 1949, e ali urinaram. As fotos foram publicadas pelo jornal Hoy, de Havana, no dia seguinte).
J. M.: Sim, eu sei. No Corpo de Marines nos falavam de Cuba como uma colônia dos Estados Unidos e nos ensinaram algo de História. Parte da formação de um marine é aprender algumas coisas dos países que pensamos invadir, como diz a canção.
R. M. E.: A canção dos marines?
J. M.: (Canta) “From the halls of Montezuma, to the shores of Tripoli…” (Desde as salas de Montezuma até as praias de Trípoli…)
R. M. E.: Quer dizer, os marines querem estar em todo o mundo.
J. M.: O sonho é dominar o mundo…, ainda que pelo caminho nos transformem todos em assassinos.
Se você quiser assistir um vídeo com o próprio Jimmy Massey falando, em inglês sem tradução ou legenda, vá: http://www.youtube.com/watch?v=ia_003j9nZg

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