segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Karl Marx Manda Lembranças

Gente, eu dificilmente recomendaria a leitura da Folha, mas é que sábado saiu um negócio incrível no caderno Dinheiro, que merece ser reproduzido.
De vez em quando ainda dá pra ler o que escrevem nos jornais gordos...






Karl Marx Manda Lembranças
Por Cesar Benjamin



As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os economistas chamam "comportamento racional". Dizem coisas complicadas, pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D - D". Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.

*CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006).

Fonte: Folha de S. Paulo (20/9)

2 comentários:

Danilo Lemos disse...

Quando a veja coloca uma porra dessas em suas páginas, é pq o mundo está mundando. E só pode ser pra pior.

Pq muito mais fácil transformar K.M. no nostradamus com o velho "eu já sabia" do que lembrar que o valor em títulos do Tesouro americano nas reservas chinesas chega a US$ 900 bilhões, ou 70% do total. Ninguém fala muito na socialização dos prejuizos e da possibilidade séria de uma crise sistêmica. E qualquer analista meia boca sabe que mesmo com todo essa grana do governo não dá a estabilidade necessária, e o perigo da crise ronda.

No mais, a direita citando Karl Marx, só pode ser pro mal!

Max Gimenes disse...

já tinha visto esse artigo do Cesar Benjamin. muito bom, como quase tudo que ele escreve a cada quinze dias em sua coluna na Folha.

Karl Marx manda lembranças a todos nós. e o Max aqui manda uma lembrança também (ao Danilo): Cesar Benjamin foi o vice na chapa da Heloísa em 2006, logo não faz parte da direita e, como grande economista e militante envolvido em diversas lutas sociais, tem total legitimidade para citar Marx.

e, a propósito, viva o socialismo!

 


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